[Publicado também em http://pontocritico.org/08/05/2017/o-jovem-prefeito-que-esqueceu-da-juventude/]
Você consegue imaginar a cena de um agente policial entregando sua
arma e algemas à um cidadão civil e dizendo “resolva o seu problema”?
Provavelmente não. Afinal, sabemos que o policial, no exercício de sua
função, tem que agir conforme a lei e não transferir sua
responsabilidade para o privado. Assim como sabemos que qualquer agente
público que utiliza a prerrogativa do cargo para atentar contra os
princípios da administração pública violando os deveres de honestidade,
imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, incorre em crime
de improbidade (Lei 8.429/92).
Nesse sentido, por qual motivo parece ter se tornado natural que
parlamentares utilizem sua prerrogativa de mandatários para, ao invés de
elaborar e fiscalizar o cumprimento das leis que beneficiem o total da
população, atuar de forma privada direcionando sua ação para o
atendimento de maneira particular das necessidades exclusivas daquelas e
daqueles que por alguma razão chegam às portas de seus gabinetes?
Vereadoras e vereadores, Deputadas e Deputados, Senadoras e
Senadores, afinal de contas, para quê são eleitos? Em tempos onde o
sistema político e a democracia representativa são simultaneamente
agredidos e contestados, é fundamental questionar que espécie de
representação temos e qual realmente deveríamos ter.
É lugar comum entre parcela significativa da população a ideia de que
cabe aos parlamentares, além de fazer as leis e fiscalizar o executivo,
prestar serviços de agenciamento de empregos, pagamento de contas e
faturas, facilitação e intermediação do acesso ao sistema público de
saúde e educação, doação de materiais de construção e de toda espécie de
ajuda para festas, formaturas e comemorações.
Esta compreensão muitas vezes é reforçada pela manutenção destas
práticas por membros das casas legislativas. Ocorre que estas ações, não
importa a intenção com que são realizadas, simbolizam uma prática
política extremamente danosa, que podemos caracterizar como
assistencialismo parlamentar.
Assistencialismo, bom sempre lembrar, que não guarda relação com
Assistência Social. Esta, na definição da Lei Orgânica da Assistência
Social (Lei nº 8.742/93) é um “direito
do cidadão e dever do Estado […] realizada através de um conjunto
integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o
atendimento às necessidades básicas“.
Enquanto que o assistencialismo, nas palavras do Professor José Paulo Netto1 é verdadeiro “vetor
de regressividade no campo profissional do Serviço Social […] marcado
pelo caráter emergencial, pelos traços manipuladores, pela ideologia da
benemerência e do favor, pela incidência do clientelismo (‘caciquismo’),
pelo pragmático enfrentamento de expressões da ‘questão social’ com a
objetiva ignorância do seu sistema de causalidades“.
Ao praticar atos desta natureza, portanto, um parlamentar incorre em
duplo problema moral: por um lado, deixa de cumprir com seu papel
elementar de fiscal, pois “soluciona” por via alternativa e privada
problema que deveria ser objeto de sua ação institucional e pública;
segundo, que atua como substituto momentâneo do próprio Estado, criando
uma unidade impossível entre o público e o privado.
Desta situação extraímos uma cenário de grande confusão entre as
esferas pública e privada. De fato, o subsídio percebido pelos
parlamentares lhes pertence para que façam o que bem entenderem, desde
que dentro da lei. No entanto, nenhum parlamentar é eleito para servir
de redistribuidor de proventos percebidos em função do cargo para
terceiros que necessitem. Afinal, toda a sociedade, em alguma medida,
necessita.
Um parlamentar é eleito para, no mínimo, desempenhar as funções que a
lei lhe atribui, sendo a dos parlamentares federais aquelas atribuições
estabelecidas nos artigos 48 a 58 da Constituição Federal, a dos
parlamentares estaduais as previstas entre os artigos 6º a 15º da
Constituição do Estado de Pernambuco e a das vereadoras e dos vereadores
de Petrolina as atribuições instituídas na Lei Orgânica Municipal
conforme o previsto entre os artigos 10 a 33.
É certo que a definição jurídica e legal das atribuições
parlamentares não são representativas de todos os aspectos de seu papel,
mas servem para demonstrar a importância destes. Principalmente quando
analisamos os limites da ação destes agentes públicos e até onde sua
ação pode ou não se confundir com sua esfera privada.
A partir do momento em que um parlamentar, de forma reiterada,
pratica atos assistencialistas como pagar contas, conseguir vagas em
instituições de saúde e de educação ou desempenha a função de agência de
empregos, ele está indiretamente contribuindo para a manutenção da
situação de vulnerabilidade que estes sujeitos provavelmente se
encontram, pois a solução de uma ou algumas situações particulares
sempre serão insuficientes diante da demanda da sociedade.
Se o parlamentar substitui a ação do Estado, estará dizendo para a
sociedade que a ineficiência do circunstancial do Estado deve ser sanada
pela ação permanente da iniciativa privada, o que significa uma visão
absolutamente empresarial do Estado. A prática assistencialista,
portanto, concorre para a ampliação da ideia equivocada de Estado como
prestador de serviços e não como a de garantidor de Direitos.
Por fim, vale destacar, que a prática da caridade não deve ser
criminalizada. Pelo contrário. Fazer o bem e ser sensível aos problemas e
as dificuldades do povo é algo merecedor de elogio. Mas transformar a
prática da caridade em ação institucional é grave problema,
principalmente quando o agente é um parlamentar.
Torna-se um problema, pois, os indivíduos que se beneficiaram da
prática individual do parlamentar terão com este uma relação de
dependência. A dependência da prática individual esbarra justamente no
juízo de valor que este faz de cada caso concreto e não do dever
garantidor que tem o Estado. No fim das contas, no momento decisivo de
avaliar a ação parlamentar, muitos farão um julgamento influenciados
pela ação particular daquele e não de sua ação enquanto representante de
toda a sociedade.
O assistencialismo parlamentar, dessa forma, é um problema social e
enquanto tal deve ser tratado. Sua perpetuação impõe a maioria do povo
uma condição de completo abandono pela maioria dos parlamentares, uma
vez que estes estarão voltados para a ação de interesses que não são de
todos, mas dos particulares que por causa de sua ação individual,
criaram com ele uma relação de dependência. Relação que, no fim das
contas, será lembrada na próxima eleição.
1. NETTO, José Paulo. Assistencialismo e regressividade profissional
no Serviço Social. Disponível em:
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