[Texto originalmente publicado na Revista Esquerda Petista de Janeiro de 2022]
A
série
Tóquio. Nairóbi.
Berlim. Moscou. Helsinque. Oslo. Denver. Rio. Estocolmo. Palermo. Lisboa.
Marselha. Bogotá. Manila. O que todas essas cidades possuem em comum? São os
codinomes dos personagens da série La Casa de Papel, produção espanhola que
estreou no ano de 2017 e se tornou um dos maiores sucessos do streaming
Netflix.
Por alguns anos, ela
permaneceu como a série mais vista da plataforma, sendo o conteúdo em língua
não inglesa mais assistido entre todos os títulos disponíveis. Criada por Alex
Pina, nascido em Pamplona, e dirigido por Jesús
Colmenar, Koldo Serra, Álex Rodrigo e Javier Quintas, La Casa de Papel teve sua
última temporada lançada no dia 03 de dezembro de 2021.
Mas afinal de contas,
como uma série não americana, com um roteiro que tinha tudo para ser mais um
clichê, tornou-se um fenômeno global? Qual a novidade em outra história de
assalto? Quantos e quantos filmes já não mostraram os mais genais planos e
roubos? Por que então todo esse sucesso? Agregue-se o fato de não haver nenhuma
atriz ou ator hollywoodiano que impulsionasse por si o enredo da história.
Para começar, La Casa
de Papel possui um conjunto de elementos que se assemelham a maioria dos filmes
e demais produções do gênero. Por trás do plano genial, uma mente genial. Na
série, esta é a do Professor, personagem interpretado por Álvaro Morte, que
também fez “El secreto de Puente Viejo”.
Além do Professor, o
grupo de atracadores é formado por pessoas com habilidades essenciais para o
sucesso do plano. Para quem já assistiu algum dos filmes da trilogia “Onze
Homens e Um Segredo”, de Steven Soderbergh ou “O Plano Perfeito”, de Spike Lee,
nenhuma novidade.
Mas talvez seja
justamente aí, naquilo que tantos já fizeram, que La Casa de Papel conseguiu
introduzir os elementos do seu sucesso. Por trás dos macacões vermelhos e das
máscaras de Salvador Dalí, não estavam apenas os personagens da série, mas cada
um e cada uma de nós, cumplices do assalto.
Pois foi justamente
essa a atmosfera construída ao longo de toda a série. A cada momento em que o
plano era explicado e que os fatos se desdobravam, era possível sentir a
empatia de quem faz parte de uma torcida. Ou melhor, de quem é um jogador do
mesmo time. Além disso, ao conhecer a história de cada personagem, os laços de
afinidade foram sendo cuidadosamente fiados. Nos deparamos com pessoas falhas,
orgulhosas, egoístas, cheias de defeitos e problemas. Mas também, cheias de
sonhos, bondade, solidariedade, desejos e esperanças.
A série consegue o
feito de mostrar, através de um crime, pessoas comuns fazendo o extraordinário.
E esse extraordinário não é movido por um ideal comum de mudar o mundo ou
enfrentar o sistema. Cada um aceita participar da empreitada por seus próprios
motivos e interesses. Mas logo fica evidente que há muito mais do que apenas a
soma de interesses individuais.
Existe sim um sistema à
ser enfrentado. E esse sistema está expresso em símbolos. Primeiro, a Casa da
Moeda da Espanha. Um lugar que, literalmente, imprime dinheiro. Papel Moeda. A mesma
que é responsável pela miséria e pelo sofrimento de alguns dos nossos
personagens em vidas complicadas e cheias de dor. O segundo, o próprio Banco da
Espanha e sua reserva de ouro. Símbolo de poder e de dominação, o ouro espanhol
já foi objeto de contos, mitos e histórias sobre maldições e piratas. Acumulado
pela pilhagem de países pobres, principalmente da América Latina e do Caribe
através de séculos, é justamente a reserva de ouro do Banco da Espanha que serve
de barganha para a liberdade.
Não são assaltos a
bancos privados, a cassinos ou ao cofre de um bilionário. Não é a “fortuna
privada”, que na maior parte dos filmes é o objeto da cobiça e da justiça. Os alvos
são símbolos de poder e dominação, e isso faz toda a diferença. Acrescente-se a
trilha sonora que embala alguns dos momentos mais marcantes da série, como as
celebrações ao som da canção antifascista “Bella Ciao”, e temos a
caracterização do que realmente representa aquilo que estão fazendo,
coletivamente, nossos personagens: lutando.
Mas será correto
considerar a ação de um pequeno grupo de assaltantes, movidos por interesses
particulares, a representação de uma luta antissistema? Certamente é preciso
fazer muitas ponderações. Por mais que milhões de Euros jogados do céu nos faça
sentir uma “justiça de Robin Hood”, isso por si só não faz de alguém um herói.
Banditismo
Social?
O conceito de
banditismo social está presente, entre outras obras, no livro “Bandidos”, do
historiador marxista Eric Robsbawm. Na obra, Robsbwam apresenta diversas
caracterizações e exemplos históricos de grupos que agiram contra “a lei e a
ordem”, mas que foram vistos por seus pares como protetores ou heróis.
Ao falar do Brasil,
Robsbawm lembra dos cangaceiros, com destaque para Virgulino Ferreira da Silva,
o Lampião. O exemplo de Lampião e seu bando ilustra a ambiguidade dos “bandidos
sociais”, vistos tanto como heróis quanto como criminosos. De toda forma, uma das
ideias expressas é a do “bandido como uma figura de protesto e rebelião social”.
A noção de banditismo
social aparece de diversas formas em La Casa de Papel. Em suas primeiras
temporadas, que retratam o assalto a Casa da Moeda da Espanha, o plano do
Professor tem como um dos seus principais elementos o ganho do apoio popular. A
chuva de Euros lançados a partir de dirigíveis, além de cumprir o papel de
distração, busca constituir um caráter “social” ao assalto.
Algo que também é
demonstrado a cada tentativa de convencer os reféns a colaborarem com o
assalto, com a promessa de que parte do dinheiro ficará com eles. Em vários
diálogos, a busca pela colaboração tenta revelar que não se trata de um roubo
“mesquinho”, mas que ele possui objetivos morais bem mais grandiosos.
Assim como os exemplos
pesquisados por Robsbawm, os nossos personagens são simultaneamente vistos como
heróis e criminosos, tanto pelos reféns, quanto pelo conjunto da população que
acompanha o desenrolar do assalto. A moralidade dúbia dos assaltantes, que por
vezes faz parecer que estão tirando dos ricos para dar aos pobres, é
constantemente questionada ao terem suas vidas e passados expostos.
No entanto, mesmo
quando alguns deles têm suas identidades e crimes revelados, o que se percebe é
que a grandiosidade do que se está tentando fazer, associada a noção de justiça
que de certa forma representam, torna os personagens verdadeiros símbolos de
resistência. Não à toa que, dentro e fora das telas, as máscaras de Dalí se
transformaram em algo parecido com aquilo que a de Guy Fawkes se tornou após o
clássico V de Vingança.
Nesse sentido, cabem
ainda as palavras de Robsbawm, quando diz que o banditismo social, seja ele
reformista ou revolucionário, “em si não constitui um movimento social. Pode
ser uma alternativa disso, como ocorre quando camponeses admiram Robin Hoods
como seus defensores, por falta de uma atividade mais positiva por parte deles
próprios” (p.34).
Na ausência de uma luta
explicita e efetivamente antissistema, ter quem busque enfrentar parte dele já
é algo bem significativo. De tal forma que, mesmo não existindo uma bussola
ideológica que oriente a conduta dos personagens, a bussola moral utilizada por
eles, os conduz a um caminho muito próximo de quem luta contra o mesmo sistema
que eles estão enfrentando.
E aqui chegamos num
ponto de virada, principalmente nas últimas temporadas da série, quando os
personagens são movidos pela solidariedade com seus companheiros. O plano do
roubo ao Banco Real da Espanha, diferente do realizado na Casa da Moeda, tem o
objetivo principal de resgate. Mas muito mais do que um companheiro é resgatado
junto com ele.
As
grandes ilusões
Existem inúmeras
críticas a La Casa de Papel não ter se encerrado com o desfecho do assalto a
Casa da Moeda. Há quem diga que sua consagração já tinha chegado e que seria um
risco imenso reabrir as cortinas para um novo ato. Acontece que as temporadas
da série que tratam do assalto ao Banco Real da Espanha foram fundamentais para
que ela pudesse responder algumas das questões colocadas anteriormente.
A prisão de Rio e todas
as torturas pelas quais ele passou, as mentiras contadas para a população, o
uso de mercenários e a corrupção na polícia, mostraram a face do sistema
enfrentado pelos personagens. Um sistema podre, mas que não cai de maduro. E
que diante de uma ameaça reage tudo aquilo que tem de pior.
Mas além disso, um
sistema sustentando por fortes ilusões. Ao longo das primeiras temporadas,
vimos o Professor utilizar ilusões para enganar a polícia e garantir a execução
do plano. Desde pequenos truques, como falsas pistas plantadas, até grandes
feitos, como o resgate de helicóptero diante de toda a imprensa e a guarda
nacional.
Mas entre todas as
ilusões, há uma que as últimas temporadas de La Casa de Papel conseguem
demonstrar com grande êxito: a ilusão da riqueza. O assalto ao Banco Real da
Espanha se inicia para resgatar Rio, mas não termina por isso. E é o desfecho
desse assalto que faz a série responder questões e superar as dúvidas sobre se
tratar apenas da história de um grupo de bandidos que pensam unicamente em si,
ou se representam mesmo uma faísca de luta contra o sistema.
- O que é o ouro de um
país?
- Sua riqueza?
- Não, uma ilusão.
Esse breve diálogo
entre o Professor e Palermo sintetiza a ideia principal construída ao longo das
últimas temporadas da série. Desde que o plano de resgate de Rio foi
apresentado, sabíamos que era preciso retirar todo o ouro do banco. Mas porquê?
Apenas por ganância? Não. Mais de uma vez foi dito que essa era a única forma
de saírem.
Mas como? Era possível
retirar o ouro, mas não era possível sair. E é neste ponto que o plano do
Professor mostra a grande ilusão que faz o sistema funcionar, e sem a qual, ele
desmorona. A ilusão da riqueza. Em outras palavras, não se trata de ter ouro no
cofre. Se trata apenas de acharem que há.
Aqui La Casa de Papel
dá um salto de uma certa forma de “banditismo social”, para uma verdadeira
denúncia e enfrentamento ao sistema. Mesmo que a bussola que continua
orientando a ação dos personagens seja principalmente a moral, ela aponta para
o mesmo norte da ideologia.
A liberdade dos
personagens está condicionada a ilusão criada pelo próprio sistema. E o plano
faz dessa ilusão uma realidade com a qual todos precisam lidar. Ao tratar do
funcionamento do sistema capitalista como ele realmente é, La Casa de Papel deixou
para trás a maior parte das dúvidas que ainda podiam pairar sobre ela.
Menos, é claro, a
dúvida sobre o que tinha escrito na mensagem do Professor para o jovem Rafael.
Mas essa, talvez, seja somente mais uma ilusão.
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