2.2.22

La Casa de Papel

[Texto originalmente publicado na Revista Esquerda Petista de Janeiro de 2022]


A série

Tóquio. Nairóbi. Berlim. Moscou. Helsinque. Oslo. Denver. Rio. Estocolmo. Palermo. Lisboa. Marselha. Bogotá. Manila. O que todas essas cidades possuem em comum? São os codinomes dos personagens da série La Casa de Papel, produção espanhola que estreou no ano de 2017 e se tornou um dos maiores sucessos do streaming Netflix.

Por alguns anos, ela permaneceu como a série mais vista da plataforma, sendo o conteúdo em língua não inglesa mais assistido entre todos os títulos disponíveis. Criada por Alex Pina, nascido em Pamplona, e dirigido por Jesús Colmenar, Koldo Serra, Álex Rodrigo e Javier Quintas, La Casa de Papel teve sua última temporada lançada no dia 03 de dezembro de 2021.

Mas afinal de contas, como uma série não americana, com um roteiro que tinha tudo para ser mais um clichê, tornou-se um fenômeno global? Qual a novidade em outra história de assalto? Quantos e quantos filmes já não mostraram os mais genais planos e roubos? Por que então todo esse sucesso? Agregue-se o fato de não haver nenhuma atriz ou ator hollywoodiano que impulsionasse por si o enredo da história.

Para começar, La Casa de Papel possui um conjunto de elementos que se assemelham a maioria dos filmes e demais produções do gênero. Por trás do plano genial, uma mente genial. Na série, esta é a do Professor, personagem interpretado por Álvaro Morte, que também fez “El secreto de Puente Viejo”.

Além do Professor, o grupo de atracadores é formado por pessoas com habilidades essenciais para o sucesso do plano. Para quem já assistiu algum dos filmes da trilogia “Onze Homens e Um Segredo”, de Steven Soderbergh ou “O Plano Perfeito”, de Spike Lee, nenhuma novidade.

Mas talvez seja justamente aí, naquilo que tantos já fizeram, que La Casa de Papel conseguiu introduzir os elementos do seu sucesso. Por trás dos macacões vermelhos e das máscaras de Salvador Dalí, não estavam apenas os personagens da série, mas cada um e cada uma de nós, cumplices do assalto.

Pois foi justamente essa a atmosfera construída ao longo de toda a série. A cada momento em que o plano era explicado e que os fatos se desdobravam, era possível sentir a empatia de quem faz parte de uma torcida. Ou melhor, de quem é um jogador do mesmo time. Além disso, ao conhecer a história de cada personagem, os laços de afinidade foram sendo cuidadosamente fiados. Nos deparamos com pessoas falhas, orgulhosas, egoístas, cheias de defeitos e problemas. Mas também, cheias de sonhos, bondade, solidariedade, desejos e esperanças.

A série consegue o feito de mostrar, através de um crime, pessoas comuns fazendo o extraordinário. E esse extraordinário não é movido por um ideal comum de mudar o mundo ou enfrentar o sistema. Cada um aceita participar da empreitada por seus próprios motivos e interesses. Mas logo fica evidente que há muito mais do que apenas a soma de interesses individuais.

Existe sim um sistema à ser enfrentado. E esse sistema está expresso em símbolos. Primeiro, a Casa da Moeda da Espanha. Um lugar que, literalmente, imprime dinheiro. Papel Moeda. A mesma que é responsável pela miséria e pelo sofrimento de alguns dos nossos personagens em vidas complicadas e cheias de dor. O segundo, o próprio Banco da Espanha e sua reserva de ouro. Símbolo de poder e de dominação, o ouro espanhol já foi objeto de contos, mitos e histórias sobre maldições e piratas. Acumulado pela pilhagem de países pobres, principalmente da América Latina e do Caribe através de séculos, é justamente a reserva de ouro do Banco da Espanha que serve de barganha para a liberdade.

Não são assaltos a bancos privados, a cassinos ou ao cofre de um bilionário. Não é a “fortuna privada”, que na maior parte dos filmes é o objeto da cobiça e da justiça. Os alvos são símbolos de poder e dominação, e isso faz toda a diferença. Acrescente-se a trilha sonora que embala alguns dos momentos mais marcantes da série, como as celebrações ao som da canção antifascista “Bella Ciao”, e temos a caracterização do que realmente representa aquilo que estão fazendo, coletivamente, nossos personagens: lutando.

Mas será correto considerar a ação de um pequeno grupo de assaltantes, movidos por interesses particulares, a representação de uma luta antissistema? Certamente é preciso fazer muitas ponderações. Por mais que milhões de Euros jogados do céu nos faça sentir uma “justiça de Robin Hood”, isso por si só não faz de alguém um herói.

 

Banditismo Social?

O conceito de banditismo social está presente, entre outras obras, no livro “Bandidos”, do historiador marxista Eric Robsbawm. Na obra, Robsbwam apresenta diversas caracterizações e exemplos históricos de grupos que agiram contra “a lei e a ordem”, mas que foram vistos por seus pares como protetores ou heróis.

Ao falar do Brasil, Robsbawm lembra dos cangaceiros, com destaque para Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. O exemplo de Lampião e seu bando ilustra a ambiguidade dos “bandidos sociais”, vistos tanto como heróis quanto como criminosos. De toda forma, uma das ideias expressas é a do “bandido como uma figura de protesto e rebelião social”.

A noção de banditismo social aparece de diversas formas em La Casa de Papel. Em suas primeiras temporadas, que retratam o assalto a Casa da Moeda da Espanha, o plano do Professor tem como um dos seus principais elementos o ganho do apoio popular. A chuva de Euros lançados a partir de dirigíveis, além de cumprir o papel de distração, busca constituir um caráter “social” ao assalto.

Algo que também é demonstrado a cada tentativa de convencer os reféns a colaborarem com o assalto, com a promessa de que parte do dinheiro ficará com eles. Em vários diálogos, a busca pela colaboração tenta revelar que não se trata de um roubo “mesquinho”, mas que ele possui objetivos morais bem mais grandiosos.

Assim como os exemplos pesquisados por Robsbawm, os nossos personagens são simultaneamente vistos como heróis e criminosos, tanto pelos reféns, quanto pelo conjunto da população que acompanha o desenrolar do assalto. A moralidade dúbia dos assaltantes, que por vezes faz parecer que estão tirando dos ricos para dar aos pobres, é constantemente questionada ao terem suas vidas e passados expostos.

No entanto, mesmo quando alguns deles têm suas identidades e crimes revelados, o que se percebe é que a grandiosidade do que se está tentando fazer, associada a noção de justiça que de certa forma representam, torna os personagens verdadeiros símbolos de resistência. Não à toa que, dentro e fora das telas, as máscaras de Dalí se transformaram em algo parecido com aquilo que a de Guy Fawkes se tornou após o clássico V de Vingança.

Nesse sentido, cabem ainda as palavras de Robsbawm, quando diz que o banditismo social, seja ele reformista ou revolucionário, “em si não constitui um movimento social. Pode ser uma alternativa disso, como ocorre quando camponeses admiram Robin Hoods como seus defensores, por falta de uma atividade mais positiva por parte deles próprios” (p.34).

Na ausência de uma luta explicita e efetivamente antissistema, ter quem busque enfrentar parte dele já é algo bem significativo. De tal forma que, mesmo não existindo uma bussola ideológica que oriente a conduta dos personagens, a bussola moral utilizada por eles, os conduz a um caminho muito próximo de quem luta contra o mesmo sistema que eles estão enfrentando.

E aqui chegamos num ponto de virada, principalmente nas últimas temporadas da série, quando os personagens são movidos pela solidariedade com seus companheiros. O plano do roubo ao Banco Real da Espanha, diferente do realizado na Casa da Moeda, tem o objetivo principal de resgate. Mas muito mais do que um companheiro é resgatado junto com ele.

 

As grandes ilusões

Existem inúmeras críticas a La Casa de Papel não ter se encerrado com o desfecho do assalto a Casa da Moeda. Há quem diga que sua consagração já tinha chegado e que seria um risco imenso reabrir as cortinas para um novo ato. Acontece que as temporadas da série que tratam do assalto ao Banco Real da Espanha foram fundamentais para que ela pudesse responder algumas das questões colocadas anteriormente.

A prisão de Rio e todas as torturas pelas quais ele passou, as mentiras contadas para a população, o uso de mercenários e a corrupção na polícia, mostraram a face do sistema enfrentado pelos personagens. Um sistema podre, mas que não cai de maduro. E que diante de uma ameaça reage tudo aquilo que tem de pior.

Mas além disso, um sistema sustentando por fortes ilusões. Ao longo das primeiras temporadas, vimos o Professor utilizar ilusões para enganar a polícia e garantir a execução do plano. Desde pequenos truques, como falsas pistas plantadas, até grandes feitos, como o resgate de helicóptero diante de toda a imprensa e a guarda nacional.

Mas entre todas as ilusões, há uma que as últimas temporadas de La Casa de Papel conseguem demonstrar com grande êxito: a ilusão da riqueza. O assalto ao Banco Real da Espanha se inicia para resgatar Rio, mas não termina por isso. E é o desfecho desse assalto que faz a série responder questões e superar as dúvidas sobre se tratar apenas da história de um grupo de bandidos que pensam unicamente em si, ou se representam mesmo uma faísca de luta contra o sistema.

- O que é o ouro de um país?

- Sua riqueza?

- Não, uma ilusão.

Esse breve diálogo entre o Professor e Palermo sintetiza a ideia principal construída ao longo das últimas temporadas da série. Desde que o plano de resgate de Rio foi apresentado, sabíamos que era preciso retirar todo o ouro do banco. Mas porquê? Apenas por ganância? Não. Mais de uma vez foi dito que essa era a única forma de saírem.

Mas como? Era possível retirar o ouro, mas não era possível sair. E é neste ponto que o plano do Professor mostra a grande ilusão que faz o sistema funcionar, e sem a qual, ele desmorona. A ilusão da riqueza. Em outras palavras, não se trata de ter ouro no cofre. Se trata apenas de acharem que há.

Aqui La Casa de Papel dá um salto de uma certa forma de “banditismo social”, para uma verdadeira denúncia e enfrentamento ao sistema. Mesmo que a bussola que continua orientando a ação dos personagens seja principalmente a moral, ela aponta para o mesmo norte da ideologia.

A liberdade dos personagens está condicionada a ilusão criada pelo próprio sistema. E o plano faz dessa ilusão uma realidade com a qual todos precisam lidar. Ao tratar do funcionamento do sistema capitalista como ele realmente é, La Casa de Papel deixou para trás a maior parte das dúvidas que ainda podiam pairar sobre ela.

Menos, é claro, a dúvida sobre o que tinha escrito na mensagem do Professor para o jovem Rafael. Mas essa, talvez, seja somente mais uma ilusão.


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